Mario Mendonça nasceu em 1934, no Rio de Janeiro, formou-se em Direito, mas nunca exerceu a profissão. “A arte falou mais alto” diz, sempre que a professora pedia para escrever algo, ele desenhava um cavalo – “era mais fácil”. Foi a princípio um autodidata, mas posteriormente, teve aulas com grandes nomes da pintura brasileira, entre eles Ivan Serpa e Aluísio Carvão, este último seu grande amigo. Mario se dedicou por igual às paisagens, especialmente as do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, às pinturas de interiores, naturezas-mortas, nus e retratos. Em sua trajetória foi mudando da paleta mais escura para paleta fauve, de cores claras, e seu trabalho figurativo foi abrindo espaço também para obras abstratas.
Mario Mendonça é considerado o maior artista brasileiro de arte sacra contemporânea, com exposições individuais no Brasil e na Europa. O artista pintou painéis, afrescos e pinturas em igrejas no estado do Rio de Janeiro e possui quadros em coleções importantes como as do Museu do Vaticano e de cidades como Nova York, Paris, Londres, Madri, Lisboa, Berlim, Pequim, Tóquio e Sophia (Bulgária), onde, juntamente com Cândido Portinari, representa a pintura brasileira.
Em 2000 realizou a primeira exposição do milênio no Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, chamada Mario Mendonça Pintor da Terra, Pintor do Céu, e em 2003 inaugurou o Espaço Mario Mendonça, onde criou condições para que jovens artistas de talento pudessem dar início a suas carreiras. Em 2011 abriu em Tiradentes (MG) o Instituto Mario Mendonça, com a exposição de cerca de 1.000 obras de arte contemporânea brasileira. Ainda nesse mesmo ano teve uma de suas pietá incluída no acervo da Presidência da República, no Palácio do Planalto, a pedido da Presidente Dilma Rousseff.
Premiado no Brasil e no exterior, Mario Mendonça, por intermédio de sua pintura, traduz anseios por um mundo mais justo e por um Brasil mais digno. Em sua pintura sacra é um evangelizador. Pela sua criação artística mostra-se um grande colorista. Suas pinceladas são francas e precisas. Sua obra num todo registra o olhar de um homem sobre a vida, sobre o tangível e o transcendental.
Mario Mendonça é o pintor da cidade de Tiradentes, do Cristo, das cenas sacras e do Quixote. A pintura, para ele, é “ponte entre o mundo e o espírito”.1 Se o cavaleiro da Triste Figura devaneava com castelos, ao artista será lícito fazer um milagre e ter à mão, de fato, o que parecia sonho – abrir a sua porta e entrar num museu. Ele musealizou sua casa, no Largo das Mercês, ao nela instalar uma coleção especialmente formada para esse fim. Apaixonado pela cidade museal, percebeu a vocação da casa, em sintonia com o destino do sítio urbano, e anteviu o que a realidade veio consagrar.
Na origem da bela iniciativa, está o desejo de partilha, generoso entendimento de que arte não se acumula sem comunhão. É, em síntese, uma forma radical de cifrar o mistério da vida. Unamuno sentiu que Cervantes não alcançou adentrar o espírito do Quixote, tal a força do personagem. Em Mario Mendonça, aflora o “enloquecimiento de pura madurez del espíritu”. Afirma-se “um modo de enfrentar-se, em nome da eternidade, com a contingência histórica.” Quanto a nós, conseguiríamos penetrar o sentimento profundo do artista que entrega ao espectador muito mais do que o próprio gesto criador? Ainda aqui não há outro remédio senão narrar o ocorrido.2
Ele reuniu autores fundamentais, buscou representações diversificadas e abrangentes, viajou do museu imaginário às galerias e oficinas onde poderia escolher testemunhos imprescindíveis a uma visão clara da arte brasileira. Acolheu autores estrangeiros e consolidou um trabalho sensível de museologia, que oferece a Tiradentes referência ímpar, no quadro de sua riqueza cultural.
Peripécias assinalam a formação do acervo. Acontecimentos providenciais têm viabilizado, como por encanto, a incorporação de obras notáveis. É com entusiasmo (Deus na alma, literalmente) que o colecionador se surpreende diante desses prodígios, como a pequena escultura taurina de Rosa Bonheur, o galo colorido de Lurçat ou o Mar do Norte singrado numa tela de Navarro da Costa.
Em 1963, aos 29 anos, Mario Mendonça foi hóspede de Emeric Marcier, no sítio de Sant’Ana, felizmente recuperado como casa-museu, em Barbacena. Foi ali, atrás do Monte Mário, na Estrada do Faria, que o mestre romeno fixou o ponto referencial de sua vida brasileira. Marcier recomendou-lhe pintar “uma cidade parada no tempo”, a esquecida Tiradentes, à qual se chegava por estrada de terra, pouco depois de Barroso, nas cercanias de São João del Rei.
O arraial minerador nasceu nos princípios do século XVIII, “na ponta do morro”, sob invocação de Santo Antônio. Mas se erigiu em Vila de São José del Rei, em 1718, para honrar o príncipe dom José, futuro rei de Portugal. Tornou-se um dos pontos mais expressivos da Capitania mineira. Com a República, recebeu o nome de Tiradentes, em homenagem ao filho herói. O tombamento federal preserva a beleza do núcleo urbano e a esplêndida paisagem em que se acha inserido.
Para o artista, foi um alumbramento. A vila então placidamente empobrecida, o fulgor da talha da matriz e a monumentalidade da montanha arrebataram sua emoção. A paixão se transformou em amor definitivo. Todos os anos, em junho, “e havia inverno naquele tempo”, recorda, “eu voltava para pintar, ficando hospedado em casas de pessoas que me cediam quarto, comendo em um ou outro botequim, pleno de felicidade, pintando e pintando a serra imponente, as ruas, igrejas, becos, árvores e tudo o que via – tudo me empolgava”.3
Teve a sorte de uma significativa encomenda de telas sobre Tiradentes, e com o produto desse trabalho pôde adquirir sua casa na cidade, “talvez pelo valor de um Opala zero, na época, isso foi em 1972”. Era uma pequena casa em terreno medido em litros de terra, traduzidos em 14 mil metros quadrados, a Quinta das Pitangueiras. Ali, continuou a pintar e amar Tiradentes: “A cidade me retribuiu tudo, como se precisasse, e hoje sou filho da terra, cidadão honorário, já com meu espaço no cemitério das Mercês, para quando chegar a hora”.
Mario Mendonça se considera muito mais mineiro do que carioca. Sua história em Minas começou nos anos 50, aluno do Instituto Padre Machado, do professor Lara Resende. As coincidências prosseguiram: “Otto, adido cultural em Lisboa, inaugurou a minha primeira individual na Europa, em 1970”. Sobre sua criação, o poeta e crítico Walmir Ayala observou que, com ela, o tema sacro na pintura brasileira contemporânea atinge o mais alto momento. O museu tiradentino mostra seu primeiro óleo, de 1963, e a produção que conseguiu guardar ao longo desses 45 anos.
Numa temporada no Estado de Nova Iorque, conheceu o Museu do Reader’s Digest. “Pensei, em pequena escala, por que não em Tiradentes? Particular, como o americano, mostrando que a cidade tem algo mais, também oferece opções em artes plásticas e que Minas Gerais é diferente e única”. Quando se deu conta, o museu estava com um acervo respeitável, e incontáveis providências de ordem prática exigiram empenho enorme do artista na organização do projeto. A morte do jornalista Márcio Bertola o privou de um colaborador atento e dedicado. Redobraram-se os esforços. Haveria de ser uma realidade luminosa, como de sua obra diz Arnaldo Niskier. “Fazer é fazer bem-feito”, justifica-se.
Cerca de mil obras inauguram a primeira exposição. O trabalho prossegue e há de continuar, já que o museu constitui uma convergência importante. As atividades que irá estimular e a atração de novas peças vão ampliar sempre o interesse ao seu redor.
No poema dedicado a Cervantes, Murilo Mendes distinguiu a sua própria medida temporal “na solidão do ar absoluto de Castela”.4 O homem foi criado para se conhecer circunscrito,/ Seus ângulos e arestas o definem, fala o poeta no coração da Espanha. Mas as convulsões da paisagem lhe tocaram a sensibilidade: “Ameaçada Castela: aqui a indústria/ já inaugura sua máquina indiscreta”.
Mario Mendonça sabe que as máquinas indiscretas rondam e ameaçam a cidade amada, alma de Minas. Como o poeta de “Tempo Espanhol”, o pintor responde, com seu equilíbrio, “frente a moinhos com radar” e “Dulcinéias de vidro”. No espaço e na medida de Tiradentes, ele acende um farol de transcendência.
*Ângelo Oswaldo de Araújo Santos é jornalista, escritor e curador de arte. Prefeito de Ouro Preto por dois mandatos, exerceu os cargos de Secretário de Estado da Cultura de Minas Gerais, presidente do IPHAN e chefe de Gabinete do Ministério da Cultura, na gestão do professor Celso Furtado, de quem foi ministro interino. Formado em direito pela UFMG, estudou comunicação social na França. Tem realizado trabalhos e missões também no exterior. Recebeu a Légion d’Honneur e a Ordre des Arts et des Lettres (França), a Ordem de Isabel, a Católica (Espanha) e a Ordem do Infante Dom Henrique (Portugal). Membro da Academia Mineira de Letras, é cidadão honorário de Tiradentes. Está entre os primeiros amigos que incentivaram Mário Mendonça a criar o Museu.
Notas de rodapé
1 Segundo a escritora Anna Maria Martins, “ao pintar as verdades teológicas, Mario se fez ponte entre o mundo e o espírito”.
2 “La invención del Quijote”, Francisco Ayala, in Don Quijote de la Mancha, Cervantes, Real Academia Española, Madri, 2005.
3 Carta de Mario Mendonça ao autor.
4 “Homenagem a Cervantes”, in Poesia Completa e Prosa, Murilo Mendes, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.